A intervenção do presidente brasileiro na Assembleia Geral das Nações Unidas é analisada pelo professor de Estratégia Internacional e Geopolítica da Escola de Administração de Empresas da FGV-SP, Antonio Gelis Filho, que conversou com a Sputnik Brasil.
O presidente Jair Bolsonaro (sem partido) discursou na abertura da 76ª Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas (ONU), nesta terça-feira (21), em Nova York, EUA.
A intervenção de Bolsonaro durou 13 minutos e o presidente defendeu o chamado tratamento precoce contra a COVID-19, exaltou os atos pró-governo de 7 de setembro como “maior manifestação de nossa história” e abordou temas como meio ambiente e agronegócio.
Para analisar o discurso do presidente brasileiro, a Sputnik Brasil conversou com Antonio Gelis Filho, professor de Estratégia Internacional e Geopolítica da Escola de Administração de Empresas da FGV-SP.
Sensação de déjà vu
Tradicionalmente, o presidente brasileiro é o primeiro líder nacional a discursar na Assembleia Geral das Nações Unidas. Dessa forma, esta foi a terceira vez que Bolsonaro discursou no evento.
Antonio Gelis Filho considera que discurso do presidente brasileiro foi “peculiar” porque reproduziu trechos de intervenções anteriores com inserções que não fazem parte de sua agenda habitual, como energia renovável e economia verde.
“Considero que esses elementos fazem parte do que eu chamo de agenda do Itamaraty, não propriamente de Bolsonaro. Mas o restante foi uma agenda bem Bolsonaro, de uma forma estranha. Porque boa parte foi uma reprodução quase ipsis litteris de trechos de discursos anteriores com uma ou outra modificação”, aponta.
Nessa colcha de retalhos, o professor destaca o seguinte trecho do discurso: “Ratificamos a Convenção Interamericana contra o Racismo e Formas Correlatas de Intolerância. Temos a família tradicional como fundamento da civilização”.
Gelis Filho sublinha que essa frase sobre a família tradicional não aparecia nos discursos anteriores e é uma forma de excluir famílias homoafetivas. Em outro momento, há uma passagem bastante parecida com um trecho da intervenção do ano passado, quando o presidente cita a Venezuela.
“Nosso país sempre acolheu refugiados. Em nossa fronteira com a vizinha Venezuela, a Operação Acolhida, do governo federal, já recebeu 400 mil venezuelanos deslocados devido à grave crise político-econômica gerada pela ditadura bolivariana”, disse Bolsonaro nesta terça-feira (21).
“Parece-me que o presidente coloca algumas falas ali no meio, ao mesmo tempo aceita que uma visão que não é a dele seja colocada também, [e] não consegue harmonizar o todo. Ou seja, quase um perfeito reflexo do governo dele nesse momento. Resta saber se isso é temporário ou se vai se agravar”, pondera o professor da FGV.
Bolsonaro está atordoado e sem estratégia
O presidente do Brasil abordou durante o seu discurso na ONU a pandemia do novo coronavírus. Bolsonaro falou sobre vacinação, salientando que o governo federal distribuiu mais de 260 milhões de doses de vacinas, e defendeu o tratamento precoce.
”Até novembro, todos que escolheram ser vacinados no Brasil, serão atendidos. Apoiamos a vacinação, contudo o nosso governo tem se posicionado contrário ao passaporte sanitário ou a qualquer obrigação relacionada à vacina. Desde o início da pandemia, apoiamos a autonomia do médico na busca do tratamento precoce, seguindo recomendação do nosso Conselho Federal de Medicina. Eu mesmo fui um desses que fez tratamento inicial. Não entendemos por que muitos países, juntamente com grande parte da mídia, se colocaram contra o tratamento inicial. A história e a ciência saberão responsabilizar a todos”, sentenciou o presidente.
Gelis Filho considera esse trecho chocante e afirma que “poderia ser o discurso de um site de conspiração da Internet”. Outro trecho que o professor aponta como “absurdo” é a passagem sobre as manifestações que ocorreram no 7 de setembro.
“No último 7 de setembro, data de nossa Independência, milhões de brasileiros, de forma pacífica e patriótica, foram às ruas, na maior manifestação de nossa história, mostrar que não abrem mão da democracia, das liberdades individuais e de apoio ao nosso governo”, afirmou o presidente.
As manifestações a favor do governo Bolsonaro no feriado do 7 de setembro contaram com inúmeras faixas, em diversas línguas, pedindo intervenção militar e com críticas aos ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) e ao presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), Luís Roberto Barroso.
O professor da FGV afirma que esse discurso caótico retrata bem o momento de Bolsonaro, “um presidente que se encontra atordoado e sem uma estratégia para lidar com a situação”.
“É um discurso para a base bolsonarista, ponto […]. Foi um discurso confuso, em que alguns trechos, que acredito terem a mão do Itamaraty, são até bastante razoáveis […] seguido por um discurso desconexo, que chega a aparecer um Bolsonaro que se parodia a si mesmo […]. É o retrato de um governo muito enfraquecido, confuso nesse momento, sem estratégia e aparentemente tentando encontrar uma maneira de se posicionar perante os insucessos recentes.”
Gelis Filho conclui alertando que a intervenção de Bolsonaro na ONU pode não ter a ressonância que o presidente espera na sua base, exatamente pela repetição de pautas antigas, uma vez que a agenda dos bolsonaristas agora é outra.
“Eu não sei quanto esse discurso será bem-sucedido com a base. Ele [Bolsonaro] está muito repetitivo [e] parece não tocar em algumas questões do momento da base bolsonarista. Por exemplo, o conflito entre os Poderes, que o presidente falou à exaustão nos últimos meses enquanto convocava a população para o dia 7 [de setembro] […]. Isso está completamente ausente, e não teria sentido estar presente, mas se ele queria falar para a base bolsonarista se esperava que tivesse algo”, afirma o professor.