Foi Cazuza quem primeiro me alertou: “você tem que ver os caras no palco, oito loucos em movimento, você nunca viu nada igual, é demais!”.
Era 1984, eu já conhecia o hit ‘Sonífera Ilha’, genial assombração da Jovem Guarda, que não era nova versão ou carbono do iêiêiê, trazia, sim, o espírito de uma época a copular com o corpo estranho da atrevida modernidade oitentista. Atrevidos, lançaram-se como “Titãs do Iê-Iê”, mas depois de se apropriarem do próprio iêiêiê, mocozaram-se sob o nome dos gigantes anti-olímpicos, só. Serve-lhes a perfeição o título, como manifesto ético e estético, de acordo com Junito de Souza Brandão, em sua “Mitologia Grega”, Titãs são: “‘As forças brutas da Terra e, por conseguinte, os desejos terrestres em atitude de revolta contra o espírito’ – isto é, contra Zeus. (…) Ambiciosos, revoltados e indomáveis, adversários tenazes do espírito consciente (…)”. Contra todos os zeuses, devoraram-lhes por dentro, depois de terem sido devorados por eles.
Aquelas oito cabeças de 1984 dispersaram-se, não poderiam caber no mesmo palco para sempre. Mas seus tentáculos multiplicaram-se, em permanentes e simultâneas rebelião e comunhão, no trem de Raul Seixas: “ói, olhe o mal, vem de braços e abraços com o bem num romance astral”.
Hoje, quarenta anos depois de tudo começar, coruscam o livro “Entre Milênios” de Haroldo de Campos, e confiscam o arco-íris no álbum “Olho Furta-cor”. Fazem a impossível volta, olham o passado com os olhos presentes e o presente com olhos passados, donde enxergam o futuro passado e presente. Não é tão complicado, é o que sempre fizeram. Ouça AQUI!
A crônica tem reputação suave, entre a literatura e o jornalismo, um alívio de humanidade entre as notícias da idem. Os Titãs, não; os Titãs sempre foram cronistas de seu tempo, com mais fúria que consolo. Talvez a fúria como único possível consolo.
Nessas crônicas do violento vinte vinte e dois, há fúria, consolo, há amor. Paira sobre a obra a sede de conhecimento que sempre os acompanhou, porém, mais velhos e sofridos, padecem da melhor forma de derrota: a compaixão. É o que de bom pode acontecer a essa idade, “não ter envelhecido antes de deixar de ser tolo”, conhecer um tanto, para saber um pouco. Eles sabem.
Da poesia desse Haroldo póstumo d’entre milênios, souberam pelo diretor Felipe Hirsch, com quem tramam explorações estético-filosóficas. Por enquanto, desse encontro veio já a inspiração de dois São Paulos. A terceira faixa (para quem ainda conta faixas assim), ‘São Paulo 3’ tem guitarra com ecos épicos de Mick Ronson, em carona cósmica numas Bowieanas, na cidade “de uma garoa que não há’: “A luz da lua lampadófora/ que pinga no olho furta-/cor dos semáforos de rua/ e coa-se no neon noctâmbulo”
Ecoam-se assim os Titãs a si mesmos, num jogo de espelhos em espaço-tempo acolhedor, chamam o ouvinte para brincar de viajar. ‘São Paulo 1’ irá fechar o disco, mais Haroldo musicado pelo intermédio-único de Sergio Britto: “De uma dulceamara ternura/ entre fera e bela/ entre estrela e estela/ esta/ com sua graça petrina/ multi-/ vária multi-/ tudinária/ cidade minha// de pedra selvagem/ não beleza pura/ de pedra selvagem/ não belezura de paisagem// é o que falam, é o que falam”.
O disco começa antes do Brasil, no ‘Apocaplipse Só’. Cantos indígenas abrem os trabalhos, desconstruindo a destruição, coragem louca que só as crianças sabem ter. E são delas as vozes que nos dizem: “O chão/ buraco do céu/ a noite/ estende seu véu”. Obra de Belloto, com a mão irmã de Britto, exigiu mais que interesse antropológico, Tony nos conta a embaixada: “Começa com a gravação de um canto ritual de índios do Xingu. Foi um périplo ter a autorização dos índios para usarmos a música. Nossos advogados foram à FUNAI, negociaram diretamente com o cacique e sua filha. No arranjo, tivemos a ideia de um coro de crianças. Através do Instituto Anelo, associação de Campinas com que colaboramos, que ensina música para moradores de comunidades, conseguimos gravar essas crianças maravilhosas. Achei expressivo que tantas vozes brasileiras díspares tenham se unido nessa música para lamentar juntas o “apocalipse”.
Lamentando, transfiguraram o apocalipse, resgatado a seu sentido original, o “dia da revelação”.
Não há mundo que se acabe enquanto pudermos ouvir Rita Lee. Ela abençoa “Olho Furta-cor” com ‘Caos’, feita especialmente para os Titãs, por ela, Roberto Carvalho e Beto Lee. Com o humor e a leveza que só dela, tá tudo dito quando se diz: “Não estou aqui a passeio/ vim em busca de mim/tô viciado em oxigênio/ tô pilhado e de saco cheio// da excrescência calhorda/da horda de vossas excelências/ cuspindo no microfone/ cheirando a enxofre (…) Hay gobierno soy contra!”.
Para nos brindar com ‘Como é bom ser simples’, Branco e Bento Mello bateram uma paleta com o palhaço e dramaturgo Hugo Possolo, que já trabalhara titãnicamente na ópera “Doze Flores Amarelas”. Para Branco dar voz a seus versos, recorreu-se a demos anteriores à produção, já que ainda convalescia da retirada de um tumor na garganta. O baixo, ele continua pilotando em todas as faixas. É comovente ouvi-lo dizer “Como é bom ser simples/ sem ter medo do pecado/ como é bom ser simples/ não bancar o derrotado”.
Em 1983, tive uma tarde inesquecível com Raul Seixas, em que ele teve a paciência de me mostrar como Luiz Gonzaga e Elvis Presley são farinha do mesmo continente musical: “Luiz Gonzaga é uma coisa tão ‘elvispresleyana'”, disse-me Raul pegando o violão pra cantar engolindo as sílabas, como quem sabe chupar, “‘vem cá, cintura fina, cintura de pilão… you’re the devil on disguise’… Pedro, os dois têm a mesma malícia…”.
Em ‘Raul’, Sérgio Britto pega daí e desenvolve, em dissimulado rockabilly, o velho iêiêiê renovado pela tradição: “Dizia que a zabumba tinha a ver com a guitarra/ dizia que o baião era igual ao rock’n’roll/ dizia que Elvis Presley tinha a ver com Luiz Gonzaga/ um de chapéu de couro e o outro com o blusão/ que o toque da sanfona tinha a ver com o do piano/ e o nordeste do Brasil com sul dos americanos/ dizia que o blue jeans tinha a ver com o gibão/ o elvis de James Dean e o Luiz de Lampião. (…)”. Até pisar forte na ordem metal: “Mistura essa farinha e joga no ventilador!”.
Na balada ‘Um mundo’, Britto e Bellotto poderiam estar falando do isolamento imposto pela pandemia, da solidão não imposta pela pandemia; podiam estar falando da distância de um para outro ou de si para si mesmo. Poderia ser um comentário político sobre globalizações frustradas, polarizações fustigadas, convicções extremadas. Mas é mesmo de um romantismo melancólico em sua constatação de que só podemos nos danar quando certeza de tudo é a única coisa que se tem em comum: “Somos um contra um/ entre nós tem um mundo”.
‘Há de ser assim’ parece aprofundar o desabafo de ‘Um mundo’, indo do melodrama ao trágico. Nesse Brasil tragicômico, os Titãs sempre frequentaram o trágico. Sérgio Britto lembra que ninguém é inocente: “Ninguém mais, nada mais é tão distante/ (…) cada vez mais há de ser assim/ o corte em seu corpo vai sangrar em mim/ cada vez mais assim há de ser/ o sol no meu rosto vai cegar você (…) Os olhos dos outros vão te fazer ver/ a cura dos outros vai salvar você”.
Em ‘Papai e mamãe’, Britto entra solidário no buraco pandêmico da filha adolescente, e nos faz lembrar Dylan, Novos Baianos, tudo que a gente ouviu na adolescência, tudo que sentiu na adolescência, como na letra de um amigo morto, Marco Jabu, em ‘Retrato Recente’: “trancada no quarto, solta no espaço, no interior de si”. Como adolescer quer dizer crescer, e os Titãs nunca deixaram de crescer, foi natural para o pai dizer pela filha: “Deixem que eu fique assim/ dançando comigo/ buscando dentro de mim/ o que eu preciso// porque eu não quero viver essa vida/ que querem que eu viva/ Não quero viver essa vida/ que ninguém acredita”.
O sujeito “ninguém” percorre todas as faixas de “Olho Furta-cor”.
Em seu diálogo perene com o iêiêiê da Jovem Guarda, Tony Bellotto atualiza o Lobo Mau. Se o “eu lírico”* tremendão de Erasmo Carlos dizia: “gosto de beijar, depois me mandar, fico sempre na dúvida com qual vou sair, eu sou o tal, tal, tal, tal, o tal…”, o “eu lírico” de Tony é um homem muito reconhecível que declara rangendo dentes: ‘Eu sou o mal’. “Deliro/ sonhos de sangue e de glória/ canto o hino/ depois eu vou embora/ quem sou eu/ eu sou o mal, caralho, não percebeu?”
*Dicionário Houaiss:
eu lírico ou poético lit
num poema, voz que subjaz ao texto, exprimindo as sensações, conceitos e ideias sobre que ele versa, e que nem sempre é concordante com a pessoa do seu autor; eu poético, sujeito lírico.
O mal absoluto vem em seguida, no horror documentário de ‘Por galletas’ (Por biscoitos). A partir da notícia de exploração e abuso de crianças por “capacetes azuis”, os soldados da paz da ONU no Haiti, Britto diz do indizível: “Sexo oral por galletas/ eso es lo que me dan a mi/ sexo oral por galletas/ y lo quitan todo de ti// Son soldados, claro que si/ y nos hablan de libertad/ pero aqui se rien de ti/ y de la humanidad”. (“Sexo oral por biscoitos/ é o que me dão/ sexo oral por biscoitos/ e tiram tudo de ti// São soldados, claro que sim/ e nos falam de liberdade/ mas aqui se riem de ti/ e da humanidade).
Depois do “mundo cão”, uma elegia à humanidade da cachorrada. Canção delícia de Branco Mello, ‘O melhor amigo do cão’ tem a feliz sacada de estribilhar au au ao contrário: “Uá uá uá uá… Sou o vira-lata/ o melhor amigo do cão”. É também um reconhecimento a Nina, Romeu e Negão, cachorros do Branco que insistiram em contribuir nos ensaios com latidos no tom…
A canção de amor ‘Preciso falar’, ah, vou te contar… que graça compartilhada, que lindeza. Não sei se devo adiantar muito, se é melhor deixar você escutar a mais cândida revelação do “eu lírico” de Tony Belloto. Não sei se resisto, não me lembro de outro artista fazendo dessa forma declaração tão delicada, abrindo o coração, com a coragem que só os amantes podem ter: “Ah! preciso falar/ de coisas que nunca falei/ // demorei para perceber/ demorei para entender// eu sou homem/ você também/ eu te quero/ o que é que tem?// nós fomos embora/ saímos do bar/ no céu a aurora/ me fez enxergar// que de repente/ tudo mudou/ naquele instante/ o sol raiou”.
Quanto bem um amor pode fazer, quanto bem um amor pode fazer a tanta gente, tanta gente e tanto amor para amar.
Talvez num aceno para Rita Lee, o baterista Mário Fabre compôs só e canta com Britto ‘Miss Brasil 200 anos’, bem-vindo rock clássico, pesado. Importante demais termos nessa hora um hino de resgate das cores brasileiras, a unir gente de vontade boa: “Qual é a verdade
que você acredita?/ desconhecidos do lado de fora/ com amor no branco da paz// contraste perfeito do mar e da areia/ brilho nos olhos da cor das estrelas/ cinza escuro do muro queimado/ e todas as cores do arco íris pintadas// desconhecidos do lado de fora/ com amor no branco da paz”.
Os cachorros latem, no mundo cão homens desumanizam-se primatas, o muro na cabeça dinossauro, bichos escrotos tem nome como os bois, felizes devem ser mesmo os peixes, sem racio símios, e com quantas corcovas o dromedário quiser pedir ao camelo.
Furta-cor é uma não cor e contém todas as cores, brilha por um instante cada uma, não as perde nunca mais, guarda tudo atrás do olho, e pulsa, ainda pulsa.
Titãs, 40 anos de fúria amorosa e amor furioso.
Fonte: Assessoria de Imprensa | Titãs/Perfexx Assessoria