Ela é considerada a única mulher a participar da Conjuração Mineira
“…e mais vale morrer com honra do que viver com desonra”. O trecho é da carta de Dona Hipólita Jacinta Teixeira de Mello que avisou o Padre Toledo da prisão de Tiradentes no Rio de Janeiro, em 1789. Hipólita é considerada a única mulher a participar de forma efetiva da Conjuração Mineira, o primeiro de uma série de movimentos que levaram à independência do Brasil de Portugal.
Agora, quase dois séculos após a sua morte em 1828, ela recebeu o reconhecimento como heroína brasileira. No último dia 6 de janeiro, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva sancionou a Lei 15.086/2025, aprovada pelo Congresso Nacional, que inscreve o nome de Dona Hipólita no Livro dos Heróis e Heroínas da Pátria.
O Livro de Aço está no Panteão da Pátria e da Liberdade Tancredo Neves, na Praça dos Três Poderes, em Brasília. O primeiro nome inscrito ali foi também de um inconfidente: Joaquim José da Silva Xavier, o Tiradentes, incluído em 1989. Também estão no livro personalidades como Machado de Assis, Luiz Gonzaga, Zumbi dos Palmares e Maria Beatriz Nascimento.
“Ela transpôs o lugar, a fronteira mais proibida para a mulher até hoje, que é a fronteira da política, que é você ir para a praça pública e falar com voz própria. Olha o que ela está ensinando para as mulheres de hoje. A importância de ir para a praça, de ir para a cena pública, falar com a própria voz, e a voz dela, Hipólita, defende a liberdade, a democracia, a independência e a República. Não é pouca coisa”, diz a historiadora, pesquisadora, escritora e professora da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Heloísa Starling.
Ela é uma das autoras, entre outras obras, de Independência do Brasil: as Mulheres que Estavam Lá, publicado em 2022 e que resgata em um dos capítulos a história de Hipólita.
Os trabalhos de Heloísa incentivaram a valorização de mulheres como Hipólita e foi por conta deles, que o Museu da Inconfidência a incluiu no Panteão dos Inconfidentes, espaço que abriga os restos mortais dos participantes da Conjuração Mineira.
Hipólita foi a primeira mulher inconfidente a ter uma lápide no local, apenas em 2023. Logo em seguida foi proposto o projeto de lei que culminou, neste ano, na inclusão dela no Livro dos Heróis e Heroínas da Pátria.
Hipólita Jacinta Teixeira de Melo nasceu em Prados (MG), em 1748. Ela fazia parte da elite de Vila Rica. Era filha de Clara Maria de Melo e Pedro Teixeira de Carvalho – grande fazendeiro da época.
Segundo o perfil disponível na página do Museu da Inconfidência, ela tinha uma personalidade forte, era destemida e uma grande intelectual. Ao contrário das mulheres de mesma classe econômica, ela estudava, falava outros idiomas e inclusive ajudava Tiradentes com traduções de livros que inspiraram a Conjuração.
A inconfidente possuía uma fazenda, chamada Ponta do Morro, onde tinha plantações, cultivava espécies de plantas que encontrava na mata e andava a cavalo para todos os cantos, já que era uma boa amazonas. Casou-se tarde para a época, aos 33 anos. De acordo com a historiadora Heloísa, porque nenhum homem queria assumi-la.
É autora da carta que avisava sobre a prisão de Tiradentes e orientava os conjurados a iniciarem o levante. Também escreveu diversos outros avisos e alertas aos companheiros. Ao fim da rebelião, Hipólita teve os bens apreendidos pelo governo, mas por conta da rede de contatos e das manobras para despistar os oficiais, conseguiu reavê-los quase integralmente.
“Qual foi a pena que eles tentaram impor a ela? Foi o esquecimento. E repara, uma coisa que é importante a gente pensar é que o esquecimento é pior do que a morte. Porque quando a pessoa morre, você leva com você ou a saudade ou a memória dessa pessoa. O esquecimento ele apaga, você nunca existiu. Então, o preço que a Hipólita pagou pelo que ela faz, pelo protagonismo na Conjuração Mineira, e por ser mulher, é ser esquecida”, diz a historiadora.
Os trabalhos de Heloísa para resgatar essa memória da história brasileira estão dando frutos. “Ao introduzir um personagem nesse livro [dos Heróis e Heroínas da Pátria], significa que a República Brasileira está reconhecendo a importância daquele personagem não só para a nossa história, mas como referência para o país”, diz.
Heloísa conta ainda que quando Hipólita recebeu um lugar no Panteão da Inconfidência, em 2023, o estilista Ronaldo Fraga fez um estandarte em homenagem a ela e o apoiou em frente a lápide de Tiradentes. A historiadora então brincou: “Tiradentes vai ficar nervoso”. A cantora Zélia Duncan que também estava presente, logo rebateu: “É bom ele já ir se acostumando com a presença da Hipólita”.
Agora, Tiradentes, que foi o primeiro inscrito no Livro dos Heróis e Heroínas da Pátria, terá também que dividir este espaço.
Orgulho para Prados
O reconhecimento de Hipólita como heroína foi comemorado pela prefeitura da cidade natal dela, Prados.
“Para Prados, esse momento tem um significado especial. Ele destaca o papel da cidade como um berço de personagens que ajudaram a moldar a história do Brasil. A inclusão de Hipólita no Livro dos Heróis e Heroínas da Pátria reforça a importância da valorização da nossa cultura e memória histórica”, diz uma publicação em rede social.
Na cidade, antes mesmo dos reconhecimentos recentes, foi erguido um monumento em homenagem a ela. O monumento registra a medalha da inconfidência póstuma recebida por ela em 1999, a pedido da então procuradora de Minas, Cármem Lúcia, atual ministra do Supremo Tribunal Federal (STF), que pediu a homenagem ao então governador Itamar Franco.
O biólogo Matteus Carvalho Ferreira, morador de Prados, acredita que o monumento na praça central da cidade, instalado em 2000, contribuiu para que a população local buscasse conhecer melhor a história de Hipólita Jacinta.
Segundo ele, foi o que lhe despertou, desde a infância, a curiosidade sobre a inconfidente. Do monumento, passou a buscar outros pontos de referência ligados à figura histórica.
Matteus conta que, pelas trilhas da Estrada Parque Passos dos Fundadores, situada aos pés da Serra São José, é possível acessar as ruínas da Fazenda Ponta do Morro, que pertenceu à Hipólita e que foi palco de diversas reuniões dos inconfidentes.
“Nos últimos anos, com o trabalho de resgate das informações sobre as mulheres da Inconfidência Mineira, mais textos e materiais foram surgindo descrevendo a sua incrível trajetória de luta e trazendo o reconhecimento merecido, ainda que tardio, para sua história”, avalia o biólogo. De acordo com ele, Hipólita se tornou um motivo de orgulho para os moradores de Prados.
Nas salas de aula
Há dez anos, Quando chegou em Prados para ser professor de história, Rafael Sousa, fez questão de leva à sala de aula o nome de Hipólita. Ele é professor de ensino fundamental e médio na escola estadual Doutor Viviano Caldas.
“Desde que eu cheguei na escola eu venho trazendo a história da Dona Hipólita porque sempre me fascinou muito. Desde a época da minha graduação eu já lia sobre ela, nas minhas pesquisas, eu encontrei documentos sobre ela, por exemplo, o testamento dela, isso já vinha me fascinando. Quando eu cheguei em prados, eu falei: nada como a gente dar uma aula de história partindo dos personagens da cidade, né?”
Sousa diz que com o projeto de Heloísa Starling, a história da heroína mineira passou a ser mais difundida e passou a incorporar os currículos de todas as escolas da região. “Os estudantes ficam fascinados. Eles gostam de saber que, na cidade deles, que a única mulher que participou da Conjuração Mineira, que era uma mulher poderosa para a época, dona de uma das maiores fazendas da região, e que tinha opinião política, tinha leitura, era uma mulher culta, era uma mulher dona de si, porque a Hipólita, a gente percebe nitidamente, era dona da vida dela, não se curvava para ninguém”, diz.
Para ele, a história brasileira tem sido recontada e o reconhecimento de Dona Hipólita é a prova disso. “Estamos vivendo uma época histórica em que a história tem sido recontada, né? E muitos personagens antes relegados ao esquecimento estão vindo à tona, como ex-escravizados, mulheres. A história tem sido contada também sobre outros pontos de vista, que não só o ponto de vista da elite dos homens desbravadores e heróis”, analisa o professor.
A partir deste ano, não apenas a escola de Sousa, mas todas as escolas brasileiras, deverão ensinar aos estudantes sobre as lutas das mulheres. A Lei 14.986/2024 torna obrigatório em todo o país, a partir de 2025, o estudo sobre as contribuições de mulheres à humanidade.
Os currículos dos ensinos fundamental e médio das escolas públicas e privadas deverão abordar as contribuições, as vivências e as conquistas femininas nas áreas científica, social, artística, cultural, econômica e política no Brasil e no mundo.
Outras histórias
No dia 29 de abril de 2023, a lápide de Hipólita foi incluída no Panteão da Inconfidência, em Ouro Preto, ao lado de Tiradentes e dos demais conjurados, o diretor do Museu da Inconfidência, Alex Sandro Calheiros de Moura estava presente. Ele conta que desde que assumiu a diretoria, lutou por essa inclusão e pela valorização de pessoas que tiveram seu papel na na história do Brasil apagado.
“Uma das primeiras coisas que percebi quando entrei no museu é que no Panteão só tinha homem”, diz. “Já tinha passado do tempo de um reconhecimento e de incluir ela no Panteão. Foi a primeira mulher que nós incluímos no Panteão dos Inconfidentes”. Como não foi possível localizar os restos mortais de Hipólita, uma caixa com terra recolhida da fazenda onde viveu será depositada dentro da lápide.
Pouco tempo depois, em maio de 2023, o deputado Jonas Donizette (PSB/SP), propôs o projeto de lei na Câmara dos Deputados, que resultaria na lei sancionada por Lula, que determinou a inscrição de Hipólita no livro dos Heróis e Heroínas da Pátria. “Para o museu é uma felicidade, porque isso quer dizer também que a nossa ação foi acertada”, diz Moura.
De acordo com o diretor, o reconhecimento fortalece a necessidade de se olhar para outros atores da história do Brasil. “O fato de a gente ter essa figura no Panteão e agora ser uma heroína da pátria também forma opinião e muda um pouco a nossa mentalidade, sobretudo sobre a história oficial do país, que sempre conta a história dos homens”, diz.
“É muito recente o resgate da participação das mulheres, como de outros sujeitos históricos, mas das mulheres a gente está vivendo um momento muito interessante, muito importante de reconhecimento rápido, exatamente porque a universidade, os pesquisadores, já têm pesquisas muito importantes sobre a participação das mulheres e da Hipólita também”, acrescenta.
Para o museu, o diretor diz que tem planos de expansão de acervo e também de mudanças. “Um museu histórico é um lugar de memória. E a memória, como a gente sabe, é seletiva. A gente escolhe o que a gente quer contar. Então, um museu que é muito oficial faz uma escolha por retratar a memória das elites. A gente quer ampliar, não quer tirar essa memória, porque não podemos negar que as elites fizeram parte, têm suas contribuições, mas há outros grupos, há outras que a gente precisa também reconhecer”.
Isso, traz resultados. Desde que começou a evidenciar a história de Hipólita, ele conta que o público aumentou. Passou de cerca de 200 mil pessoas em 2019 para 347 mil em 2023. O perfil do museu nas redes sociais ganhou mais seguidores, passando de 2,3 mil para os atuais 12 mil.
Em 2025, a instituição pretende focar também em pesquisas e acervos que evidenciem a participação histórica da população negra e indígena.