Em meio a cortes orçamentários e dependência de incentivos públicos, o sistema de financiamento coletivo de animes pode inspirar uma nova era para filmes, séries e animações no Brasil

*Por Mab Vizeu

A indústria audiovisual brasileira está em uma encruzilhada. Tradicionalmente dependente de incentivos públicos, como a Lei do Audiovisual e o Fundo Setorial do Audiovisual (FSA), o setor enfrenta hoje um cenário de incerteza: os recentes cortes de 25% no orçamento do FSA e 84% na Política Nacional do Audiovisual Brasileiro (PNAB) para 2025 são um alerta vermelho. Como CEO e produtora executiva de um estúdio de animação, sempre defendi que a sustentabilidade do setor passa por diversificar fontes de financiamento — e o modelo japonês de comitês de produção oferece um caminho promissor.

A Crise do Financiamento Público e os Limites do Branded Content

O Brasil consolidou-se como um dos maiores produtores de conteúdo audiovisual da América Latina, mas essa posição está ameaçada. A dependência quase exclusiva de verbas governamentais cria vulnerabilidades, entre elas:

  1. Orçamentos cíclicos: Mudanças de governo impactam diretamente a liberação de recursos, como visto nos cortes recentes.
  2. Concorrência desigual: Com recursos limitados, apenas uma fração dos projetos é aprovada, estrangulando a criatividade e a pluralidade.
  3. Limites do Branded Content: Parcerias com marcas, muitas vezes podem limitar a liberdade criativa e alienar o público, este, pode perceber o caráter comercial forçado. Além disso, há a possibilidade da marca exigir determinadas alterações no produto que não correspondem à expectativa e gosto do público.

Diante disso, é urgente buscar modelos alternativos — e o sistema de comitê de produção, usado há décadas no Japão para financiar animes, surge como uma solução viável.

O que é um Comitê de Produção?

Inspirado no modelo japonês, chamado seisaku iinkai, um comitê de produção é um consórcio de empresas que divide custos e riscos de um projeto audiovisual. Cada membro investe capital e, em troca, recebe direitos sobre partes específicas da receita (transmissão, merchandising, licenciamento etc.). No Japão, esse sistema permitiu que animes como Demon Slayer gerassem bilhões em lucros, impulsionando não só o anime, mas vendas de mangás, trilhas sonoras e produtos licenciados.

Como Adaptar o Modelo Japonês ao Brasil?

A chave está em envolver múltiplos atores da cadeia produtiva, criando sinergias comerciais e culturais. Eis como isso poderia funcionar:

  1. Stakeholders Potenciais para Comitês Brasileiros
  • Streaming platforms: Globoplay, Netflix, Amazon Prime Video (para direitos de exibição).
  • Editoras e estúdios de quadrinhos: JBC (Companhia das Letras), Panini (que publica HQs nacionais e internacionais).
  • Empresas de música: Sony Music Brasil, Som Livre (explorando trilhas sonoras e parcerias com artistas).
  • Marcas de merchandising: Tilibra (material escolar), Iron Studios (Figures).
  • Distribuidoras de cinema: Paris Filmes, Downtown Filmes.
  • Investidores privados: Fundos de venture capital, como o Bradesco Private Equity.
  1. Fontes de Receita Diversificadas

Um comitê brasileiro poderia explorar:

  • Licenciamento internacional: Vender séries para plataformas globais (ex.: 3% da Netflix).
  • Merchandising: produtos baseados em animações nacionais.
  • Música: Parcerias com festivais como Rock in Rio para lançar trilhas.
  1. Estrutura de Risco Compartilhado

Cada empresa investiria uma porcentagem do orçamento (ex.: emissora, 20%; plataforma de streaming, 25%) e recuperaria o investimento proporcionalmente após o breakeven. Lucros residuais seriam divididos conforme participação, incentivando todos a promover o projeto.

Retorno para Investidores – Direitos Setoriais e Retorno Geral

Como Funciona o Retorno do Investimento em um Comitê de Produção?

Um dos pilares do modelo japonês de comitês de produção é a transparência na divisão de riscos e lucros, garantindo que todos os investidores sejam recompensados de forma justa e estratégica. No Brasil, esse mecanismo poderia ser adaptado para atrair empresas e investidores privados, combinando duas formas de retorno: direitos setoriais (receitas específicas por área) e retorno geral (lucro compartilhado após recuperação do investimento).

  1. Retorno Geral: Recuperação do Investimento e Divisão de Lucros
  • Fase 1: Reembolso do capital inicial
    Antes de distribuir lucros, o comitê prioriza reembolsar os investidores. Cada empresa recebe proporcionalmente ao valor aportado.
  • Fase 2: Divisão dos lucros residuais
    O que exceder o custo de produção é dividido conforme a participação no comitê.
  1. Direitos Setoriais: Retorno Específico por Área de Atuação

Além do lucro geral, os membros podem negociar direitos exclusivos sobre determinadas receitas, alinhados a seus negócios principais. Essa é a chave para atrair empresas com interesses estratégicos:

  • Streaming/Emissoras: Recebem toda  porcentagem dos direitos de transmissão.
    Exemplo: A Netflix, como membro do comitê, ficaria com 60% da receita gerada por assinaturas relacionadas à série.
  • Empresas de Merchandising: Retêm parte dos lucros de produtos licenciados.
    Exemplo: A Iron Studios (Figures) investe 15% no orçamento de uma animação e fica com 40% das vendas de bonecos baseados nos personagens.
  • Editoras/Estúdios de Quadrinhos: Controlam direitos de adaptação e vendas de HQs derivadas.
    Exemplo: A Panini, ao investir em uma série animada, recebe 60% das vendas de gibis da adaptação.
  • Empresas de Música: Exploram trilhas sonoras e parcerias com artistas.
    Exemplo: A Som Livre financia 10% de uma série e retém 50% da receita de streaming das músicas originais.
  • Patrocinadores Estratégicos: Ganham visibilidade prioritária em cenas ou campanhas.
    Exemplo: Uma marca de energético investe 5% no projeto e garante inserções naturais no enredo (sem comprometer a narrativa).

Por que isso atrairia investidores no Brasil?

  1. Flexibilidade: Cada empresa escolhe onde quer lucrar (geral ou setorial).
  2. Sinergia Comercial: A indústria de bebidas pode impulsionar vendas com uma série sobre vida noturna; uma plataforma de streaming aumenta seu catálogo com conteúdo exclusivo.
  3. Redução de Riscos: Se o projeto fracassar, as perdas são limitadas à porcentagem investida.

Caso Hipotético: Uma Série Brasileira Financiada por Comitê

Imagine uma série de fantasia chamada “Genius”, com orçamento de R$ 2 milhões:

  • Membros do comitê:
    • Globoplay (transmissão): 25% (R$500 mil) → Direito de exibição exclusiva por 2 anos. → Retorno geral proporcional.
    • Estúdio Animação (PI/Produção): 30%: (R$600 mil) → Retorno geral proporcional.
    • Tilibra (merchandising): 15% (R$300 mil) → Retorno Setorial.
    • Sony Music Brasil (trilha sonora): 10% (R$200 mil) → Retorno Setorial.
    • Cia das Letras (Venda de Mangá e Light Novel): 10% (R$200 mil)
    • Iron Studios 10% (R$200 mil) → Retorno Setorial.
  • Receita total: Ex: R$10 milhões (vendas de streaming, merchandising, música e licenciamento internacional).
  • Retorno:
    • Reembolso inicial: R$2 Milhões devolvidos proporcionalmente para as empresas do Comitê (ex.: Globo play recebe R$500 mil).
    • Lucro residual: 8 milhões divididos conforme participação em porcentagem no comitê de produção.
    • Direitos Gerais: (Licenciamento internacional: Direitos de exibição e distribuição fora do Brasil, patrocínios, vendas de home video: Blu-rays e DVDs.)
    • Direitos setoriais: As empresas que tiverem Direitos Setoriais irão receber de acordo com o contrato (percentual varia de 40% a 50%).

EX:

Sony Music Brasil → 50% dos lucros com a venda do álbum, músicas da série e apresentações musicais da série. Os outros 50% serão divididos de acordo com a porcentagem das empresas do Comitê de Produção

Tilibra → 40% dos lucros com a venda de agendas, cadernos, mochilas, e materiais escolares e de escritório da série, produzidos pela Tilibra ou sub-licenciados para outras empresas. Os outros 60% serão divididos de acordo com a porcentagem das empresas do Comitê de Produção.

Iron Studios → 40% dos lucros com a venda de figures da série, produzidos pela Iron ou sub-licenciados para outras empresas. Os outros 60% serão divididos de acordo com a porcentagem das empresas do Comitê de Produção.

Desafios a Superar

Para replicar o modelo japonês, o Brasil precisa:

  1. Cultura de colaboração: Empresas precisam enxergar o audiovisual como investimento, não custo.
  2. Marco regulatório: Leis claras sobre divisão de lucros e direitos autorais.
  3. Profissionalização: Capacitar produtores para negociar contratos complexos com múltiplos stakeholders.
  4. Incentivo fiscal: Redução de impostos para empresas que investirem em comitês (similar à Lei do Audiovisual, mas focada no setor privado).

Rumo a uma Indústria Auto-sustentável

O sistema de comitês de produção não é uma solução mágica, mas uma ferramenta poderosa para reduzir a dependência de verbas públicas e criar uma indústria robusta. Se adaptado à realidade brasileira — com sua diversidade cultural e potencial global —, esse modelo pode alavancar não só filmes e séries, mas toda uma economia criativa: de jogos e música a turismo (ex.: locações de novelas).

Como defendia o cineasta Glauber Rocha, “uma câmera na mão e uma ideia na cabeça” não são suficientes sem um ecossistema de apoio. O comitê de produção oferece essa estrutura, distribuindo riscos e multiplicando oportunidades. Para o Brasil, é hora de olhar para o exemplo japonês e ousar reinventar seu futuro audiovisual.

Um Modelo Adaptável à Realidade Brasileira

Os direitos setoriais permitem que empresas diversifiquem suas apostas e lucrem onde já têm expertise (ex.: uma marca de moda investindo em uma série teen para vender roupas da coleção). Já o retorno geral garante que até investidores sem interesse direto no conteúdo (como fundos financeiros) participem dos lucros.

Para o Brasil, esse sistema não só reduziria a dependência de verbas públicas, como criaria uma cadeia de valor integrada: o sucesso de uma série impulsionaria vendas de produtos, streaming, música e até turismo (ex.: locações virando pontos turísticos). O desafio está em profissionalizar as negociações e criar contratos claros, mas os exemplos do Japão — e até casos nascentes brasileiros — mostram que o caminho é viável.

*Por Mab Vizeu, CEO e Produtora Executiva de Noches Produções, especializada em animação e modelos inovadores de financiamento

 

Fonte: La Presse Comunicação

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