Relatório inédito feito nas cidades de São Paulo e Rio de Janeiro apontou que há diferenças nas abordagens policiais para suspeitos negros e brancos. Segundo o estudo, pessoas negras têm 4,5 vezes mais chances de serem abordadas do que as brancas.
O levantamento foi feito pelo Instituto de Defesa do Direito de Defesa (IDDD), cujos membros são advogados criminais e defensores de direitos humanos, e o Data_Labe, organização social com sede no conjunto de favelas da Maré. Foram ouvidas 1.018 pessoas, sendo 510 no Rio de Janeiro e 508 em São Paulo. Destes, 64% declararam já terem passado por pelo menos uma abordagem policial – 652 pessoas.
Chamada “Por Que Eu?”, a enquete ouviu entrevistados no período de 3 de maio a 12 de junho de 2021. A análise dos dados levantados foi feita entre junho de 2021 e junho deste ano.
Para abordagens policiais feitas dentro de residências, 13,5% dos entrevistados dos entrevistados negros relataram já terem passado pela situação, enquanto 5,1% dos entrevistados brancos informaram este tipo de violência.
Entre os que declararam terem sido abordados mais de dez vezes, o percentual entre os negros foi de 19,1% – mais que o dobro em comparação aos entrevistados brancos (8,5%).
Protocolo
“A gente consegue perceber experiência de violência com ambos os grupos, mas as situações são mais intensas, mais recorrentes, mais frequentes, quando a gente analisa as pessoas negras, considerando as devidas proporções de respondentes”, disse a jornalista Elena Wesley, uma das porta-vozes do Data_Labe.
O objetivo do relatório é criar um protocolo mais objetivo, pelo Ministério Público e pelo Poder Judiciário, que não abra margem para a interpretação subjetiva dos agentes e que impeça que haja diferenças nas abordagens. Segundo Elena Wesley, há relatos de insegurança e medo por parte de pessoas negras em relação à força policial.
A advogada Vivian Peres, coordenadora de Programas do IDDD, observou que não há questionamento por parte do Judiciário nas abordagens.
Vivian relatou ainda a necessidade de criação de protocolos que possam ser observados por agentes de segurança. “Se existisse um protocolo com regras objetivas, talvez a gente pudesse começar a mudar essa realidade.”
Recorte racial
Elena Wesley chamou a atenção para outro dado que evidencia disparidade racial. Para pessoas negras, a cor da pele foi mencionada em 46% das abordagens. Já para pessoas brancas, a cor da pele foi mencionada em 7% das abordagens.
Em relação às abordagens, dados da Secretaria de Segurança Pública de São Paulo (SSP-SP) mostram que, em 2020, 12 milhões foram efetuadas por agentes de segurança. Destas, menos de 1% culminou em prisão em flagrante.
“É um número muito pequeno para uma quantidade tão grande de pessoas que são abordadas de forma ilegal, porque não havia evidências, e sem, de fato, significar um enfrentamento à criminalidade”, afirmou a advogada Vivian Peres.
Violência
O levantamento mostra que 89% das pessoas negras que passaram por abordagem policial relataram terem sofrido algum tipo de violência física, verbal ou psicológica. Para as pessoas brancas, o número é de 66,8%.
Em relação ao assédio moral, 18,9% dos negros foram vítimas da prática, enquanto 13% dos brancos relataram o ocorrido. Embora pequena, a frequência de ameaças também é maior entre os negros: 3,3% contra 2,2% no grupo de pessoas brancas.
Revista íntima e avaliações
O grupo de pessoas negras foi o que relatou maior incidência de contato nas partes íntimas durante abordagens: 42,4% ante 35,6% no outro grupo. Neste número estão homens, mulheres e pessoas que se classificam em outros gêneros.
A grande maioria (74,5%) dos participantes negros que já foram abordados e que responderam ao estudo classificaram suas experiências durante abordagens policiais como “ruins” ou “péssimas”. Já no grupo de pessoas brancas, essa classificação correspondeu a 47,1% do total.
Posicionamentos
Em nota, a Secretaria de Segurança Pública de São Paulo esclareceu que os procedimentos são revisados quando necessário, tanto na Polícia Militar quanto na Polícia Civil do estado.
“A PM, por exemplo, deu início à atualização de seus procedimentos operacionais padrão (POP), bem como do manual de direitos humanos da instituição. Todos os policiais militares frequentam anualmente o EAP [Estágio de Aperfeiçoamento Profissional]. A Polícia Civil aumentou a carga horária de matérias relacionadas aos direitos humanos em cursos ministrados pela Acadepol”, conclui a nota.
A Polícia Militar do Estado de São Paulo informou, em nota, que “em relação às abordagens policiais, informa que atualiza seus protocolos operacionais (POP) constantemente no processo de excelência pela gestão de melhoria contínua. Os POPs são padronizados de forma a não observarem estereótipos raciais, de gênero, classe social, idade ou religião”. A instituição também explicou que as forças policiais têm utilizado armas neuro-incapacitantes (tasers) e câmeras corporais para minimizar o uso da força.
O Conselho Nacional de Justiça (CNJ), por sua vez, informou que não comentará o estudo, visto que a pesquisa trata da atuação das forças de segurança.
A assessoria de imprensa da Secretaria de Estado de Polícia Militar do Rio de Janeiro informou à Agência Brasil, em nota, que “nos protocolos que norteiam as ações de abordagem da Corporação não há qualquer distinção de contexto social – raça, credo religioso, orientação sexual, entre outros.”
A instituição esclareceu ainda que “em relação à questão racial, um desafio que deve ser enfrentado de forma contundente por toda sociedade brasileira e até mundial, a Polícia Militar do Rio de Janeiro orgulha-se de ter sido a primeira instituição pública a incorporar negros em suas fileiras, mesmo antes da abolição da escravatura. Hoje, 40% dos policiais militares são afrodescendentes. A Polícia Militar do Rio de Janeiro orgulha-se ainda de ter sido uma das primeiras instituições a ser comandada por um negro, o saudoso Comandante-Geral Coronel Carlos Magno Nazareth Cerqueira, que deixou um legado de valor inestimável para a Corporação.”
Até o fechamento da reportagem, o Ministério Público do Rio de Janeiro (MPRJ) não havia respondido ao pedido de comentários sobre o estudo.