Por Ana Livia Esteves, Yasmin Scali/Sputnik
Após a declaração do ministro da Economia, Paulo Guedes, afirmando que o Mercosul “impediu o Brasil de se desenvolver”, a Sputnik Brasil ouviu especialista para saber qual quadro se desenhará a partir do interesse do governo de flexibilizar o país diante do bloco.
Na terça-feira (8), o ministro defendeu mais uma vez a modernização das regulamentações do Mercosul, avaliando que a entrada do Brasil no bloco comercial foi uma “armadilha”. Para o ministro, o Mercosul “impediu o Brasil de se envolver em uma integração produtiva mais eficiente”.
“Ficar fechado [no Mercosul] foi muito prejudicial para o Brasil nos últimos 30 anos. O Brasil está negociando menos com nossos parceiros hoje. Então foi uma armadilha. Isso impediu o Brasil de se envolver em uma integração produtiva mais eficiente, de se integrar em cadeias globais”, disse Guedes citado pelo O Globo.
Ao mesmo tempo, o ministro estaria conversando “com amigos” nas últimas reuniões do bloco e defendendo duas medidas: a redução de tarifas de importação e a liberdade de acordos bilaterais por fora das negociações do grupo.
A ideia, no entanto, bate de frente com os planos da Argentina, também membro do Mercosul, que insiste em uma redução mais gradual da Tarifa Externa Comum (TEC), a partir de 2023.
Por será que o Mercosul, esse conhecido bloco econômico fundado em 1991 entre Brasil, Argentina, Uruguai e Paraguai, realmente se tornou um empecilho à abertura econômica brasileira? Os parceiros do Brasil no bloco compartilham essa posição de Guedes? Para responder a essas perguntas, a Sputnik Brasil ouviu o professor do curso de Relações Internacionais da Inest/Uff, Marcio Malta.
Reprodução neoliberal
Para o professor, o discurso de Guedes é um ataque a estrutura do bloco, sendo uma tentativa de esvaziamento do mesmo, pois não existiria nenhum tipo de empecilho para as negociações entre os países. A partir desse ponto de vista, as declarações do ministro seriam uma expressão neoliberal em um contexto que não detém apenas um viés econômico, mas também conta com fortes elementos políticos, sociais e culturais.
Segundo Malta, os países que compõem o bloco representam importância significativa na economia brasileira, por exemplo a Argentina, que é um dos principais importadores do Brasil, e ao mesmo tempo é o principal país do qual o Brasil importa trigo. Trava-se assim uma interdependência bastante expressiva que não deveria ser tratada de forma reducionista pelo Ministério da Economia.
“Essa manifestação do ministro Paulo Guedes é reprodução de um neoliberalismo tacanho porque é um discurso que é uma pretensa modernização, mas no final, nada mais é do que uma liberalização do comércio, porque não se preocupa com os interesses estratégicos e tem como objetivo abrir a economia nacional para interesses forasteiros e de mercado”, explica Malta.
Porém, o especialista chama atenção para o fato de que a fala do ministro vai de encontro a um final de ciclo defendido também pelo Uruguai e Paraguai, mas reprovado pela Argentina, e que Buenos Aires se opõe a essa tentativa de modernização e flexibilização porque sabe que essas medidas vão contra os interesses históricos do bloco.
Negociações além Mercosul
De acordo com o ministro da Economia, se o Brasil negociasse com outros países sem ação conjunta ao bloco, o país teria mais vantagens. Entretanto, Malta acredita que não, pois, o que seria realmente importante é justamente a negociação concomitante, com a qual o Brasil seria mais respeitado, além de promover um fortalecimento da região.
Na verdade, para o especialista, o que coloca empecilho para o Mercosul é a forte vertente que a política externa do governo Bolsonaro tem de conduzir uma “subalternização, um servilismo, pautados em interesses estrangeiros e forasteiros de livre-comércio, e não nos interesses nacionais”, diz o professor.
Flexibilização do bloco
Para a Malta, essa flexibilização nada mais é do que uma abertura da economia para produtos estrangeiros, bem parecida com a ocorrida na década de 1990, a qual foi bem desastrosa, segundo o professor.
Lembra que esse mesmo tipo de gestão econômica ocorreu no governo do ex-presidente Fernando Collor de Mello, na qual diversas empresas nacionais não tiveram a chance de competir com produtos internacionais, o que gerou uma “quebradeira” do mercado nacional.
“Se o Brasil tinha ambicionado se tornar uma potência até em um passado recente, esse tipo de comportamento vai resultar, mais uma vez, em um aprofundamento da desigualdade”, explica o professor.
Malta destaca que essa flexibilização, bem característica da política neoliberal, tem mesmo como alvo abrir a economia sem nenhum tipo de garantia aos produtores nacionais, e que o país já vivenciou essa experiência, através da perca de postos de emprego, aumento da pobreza e da desigualdade social na década mencionada.
Tarifa Externa Comum
Sobre a TEC, que é um conjunto de tarifas sobre a importação estabelecida pelos países-membros do Mercosul, e sob a qual o governo brasileiro quer reduzir em 10% agora e em outros 10% no fim do ano, o especialista diz que não é hora de abandoná-la, pois a proposta da tarifa é benéfica não só para o Brasil como para os países parceiros.
Para Malta, a pretensão brasileira de mexer na tarifa, ou até mesmo de anulá-la, vem de um pensamento de governo que não foca nos interesses nacionais, e, por isso, se observa uma postura diferente da Argentina, pois segundo o professor, o mandato de Alberto Fernández se concentra em seu próprio país e não em inclinações entreguistas.
Governo Bolsonaro pode deixar marca no Mercosul?
O especialista acredita que sim, e que essa marca pode acontecer não só por colocar em risco a própria existência do Mercosul, mas por promover enfraquecimento e desestabilização institucional com esse tipo de comportamento.
Na verdade, Malta considera que esse processo já está em curso, pois lembrou o fato do presidente, Jair Bolsonaro, ter se retirado da reunião de comemoração dos 30 anos do Mercosul enquanto o evento ainda estava acontecendo. Além do presidente, o professor também citou o atual chanceler do Brasil, Carlos França, que, apesar de muito ativo nas redes socais, não fez nenhuma menção à comemoração do bloco.
“O que nós percebemos na política externa de Bolsonaro é um esvaziamento sim do Mercosul. Se vai culminar em um golpe de morte, em uma armadilha, como sorrateiramente falou o ministro, ainda não sabemos […], mas já destaco que o legado triste [da posição do governo no bloco] é o de esvaziamento, de desinstitucionalização e de insegurança, pois acredito que os investidores, vendo esse tipo de movimento, se sentem mais inseguros”, disse Malta.
Perspectivas para o futuro
Para o especialista, o Mercosul deve sim continuar como uma aposta, não somente por questões econômicas, mas também, como mencionado, por razões políticas, sociais e culturais, e mais que isso, Malta acredita que o bloco expressa união entre os povos, algo que a política externa do atual governo não tem promovido, por exemplo, quando publicamente critica o governo venezuelano.
O professor também considera que apenas através da institucionalização, da segurança e da solidez será possível fazer a participação brasileira no Mercosul voltar aos eixos, ajudando a fortalecer o bloco e tendo um futuro mais otimista.
Em reunião para investidores estrangeiros na terça-feira (8), o ministro da Economia, Paulo Guedes, falando em inglês, defendeu a flexibilização do Mercosul e avaliou que a entrada do Brasil no bloco foi uma “armadilha” que criou empecilhos para economia brasileira.