O final de 2021 foi dramático na Bahia. Após chuvas intensas e inundações, pelo menos 26 pessoas morreram e quase 27 mil ficaram desabrigadas em uma tragédia que afetou cerca de 177 municípios. Já em 2022, o desastre se estendeu a Minas Gerais, onde 24 pessoas foram mortas em meio às consequências das chuvas, que já deixaram quase quatro mil pessoas desabrigadas e trouxeram de volta temores de rompimentos de barragens ao estado. No Espírito Santo e no Rio de Janeiro, o aumento das chuvas também traz consequências devido às enchentes e centenas de pessoas estão desalojadas.
Morador da cidade de Itabuna, no sul da Bahia, o comunicador Rick Trindade viu de perto os efeitos das chuvas na região trabalhando como voluntário na distribuição de doações. Apesar de as enchentes não terem chegado à sua casa, Trindade e sua família ficaram ilhados e viram as águas do rio Cachoeira chegarem às portas de seu bairro. Na vizinhança, as consequências foram graves.
“A situação é complicada, porque teve gente que perdeu tudo. A água subiu muito rápido e chegou a um nível muito alto, muita gente não conseguiu tirar as coisas de casa e muita gente não acreditou que a água subiria tanto porque a água alagou ruas que nunca tinham alagado”, relata o comunicador em entrevista à Sputnik Brasil.
As chuvas são um problema histórico, amplamente descrito e conhecido no Brasil, ressalta Osvaldo Rezende, professor do Departamento de Recursos Hídricos e Meio Ambiente da Escola Politécnica da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Apesar do problema recorrente, Rezende alerta para a falta de medidas de prevenção mesmo com o aumento de períodos chuvosos de maior intensidade e do risco crescente de tragédias.
“A frequência desses eventos de grande intensidade está aumentando. A ocorrência de eventos que aconteciam a cada 50, 100 anos, tem aumentado”, aponta o professor em entrevista à Sputnik Brasil, que acrescenta que com isso também aumentou a chamada percepção de risco da população, ligada à memória de tragédias recentes.
Rezende afirma que, sabendo da frequência e da percepção de risco em relação às chuvas de grande intensidade, é necessário manter planos de contenção para evitar desastres humanitários como os registrados recentemente no Brasil.
“A principal ferramenta que a gente tem é o diagnóstico, que é entender a situação hoje, quais são as áreas que têm maior propensão à inundação e que têm maior vulnerabilidade”, diz, acrescentando que o controle da ocupação do território é fundamental nesse processo.
Rezende explica que o dinamismo das cidades modernas e o modelo hídrico adotado estressam a vazão das águas e tendem a alagar novas áreas ao longo do tempo. Além disso, a urbanização permanece com um modelo de impermeabilização do solo. Nessa dinâmica, Rezende aponta que se mantém um sistema de adaptação que tende a se esgotar e por isso mesmo deve mudar de foco.
“Isso tem um limite, a cidade vai chegar a um momento em que não há mais espaço para aumentar o nosso sistema de drenagem, em que a cidade acabou ocupando todos os espaços naturais e a gente não tem mais solução. A busca que a gente tem hoje é de adaptar a cidade ao ciclo natural da água”, afirma.
O pesquisador também ressalta que a ideia de risco, apesar da influência geográfica, depende especialmente da ocupação urbana. Com isso, o professor salienta que as tragédias humanas em eventos de inundação são problemas de origem social e não apenas natural, uma vez que o planejamento urbano pode reduzir riscos. Diante disso, ele alerta que o investimento nesse tipo de preparo vem caindo.
“A gente tem uma queda de investimentos nas ferramentas que podem nos preparar para agir, na medida que esses investimentos vêm ocorrendo. A gente precisa se preparar, e para se preparar a gente precisa desses investimentos nas ações de gerenciamento de riscos de desastres. Então, o que precisamos é retomar os investimentos para gerenciamento de riscos em todo o Brasil”, conclui.
‘Quem ajudou o povo foi o povo’
O governador da Bahia, Rui Costa (PT), chegou descrever a situação causada pelas chuvas como a maior tragédia da história baiana. Apesar da mobilização de recursos emergenciais, a crise na Bahia também ficou marcada pela polêmica ausência do presidente brasileiro, Jair Bolsonaro (PL), que estava de férias em Santa Catarina, e pela comoção nacional gerada pela situação nos municípios baianos.
Diante da situação em sua cidade na Bahia, o comunicador Rick Trindade liderou uma campanha local de solidariedade, participando de uma rede civil e espontânea de dimensão nacional que se formou diante da tragédia. Além de artistas e movimentos sociais, cidadãos como o morador de Itabuna fortaleceram a criação de redes de solidariedade angariando doações. Trindade distribuiu itens como alimentos, colchões e roupas às famílias em sua região, montando cestas básicas com a ajuda de amigos e familiares.
“A gente distribui mais de 340 cestas básicas, 180 cobertores, mais de 160 colchonetes, acho que mais de 200 toalhas”, lembra o morador de Itabuna, que também distribuiu água e até roupas íntimas diante da calamidade.
A distribuição de itens organizada pelos próprios cidadãos serviu como alívio importante, dado que o auxílio governamental na região não teve a mesma agilidade.
“Fizeram o cadastro, mas até agora muita gente não recebeu ajuda. A ajuda veio do povo”, aponta Trindade. “Quem ajudou o povo foi o povo”.
Danos permanentes
Em Minas Gerais, as chuvas intensas trouxeram à tona preocupações antigas. Desde o início da semana, a barragem de Carioca está sob risco de rompimento e dezenas de pessoas tiveram que deixar suas casas. O mesmo risco foi detectado em Mina do Pau Branco, próximo a Belo Horizonte. A situação de risco em barragens de Minas Gerais não é nova e remonta aos desastres de Mariana e Brumadinho, que somados deixaram quase 400 pessoas mortas e danos irreparáveis às famílias e moradores.
Alexandra Andrade, presidente da Associação dos Familiares de Vítimas e Atingidos do Rompimento da Barragem Mina Córrego do Feijão Brumadinho (AVABRUM), conta que a vida na cidade mudou drasticamente após o que a ABRAVUM classifica como tragédia-crime da Vale na região, que já foi conhecida pelo turismo, mas hoje vive sob a memória do rompimento da barragem.
“Houve suicídios após o rompimento. Entre os familiares das vítimas muitos não tinham passado por psiquiatras ou psicólogos e hoje vivem à base de remédios. Então o ideal é não deixar acontecer, trabalhar na prevenção, porque depois que acontece é muito difícil voltar ao que era antes. Nós nunca mais teremos os nossos familiares conosco”, explica Andrade em entrevista à Sputnik Brasil.
A residente de Brumadinho ressalta que o investimento na prevenção é o ideal. Diante da situação de risco de novos rompimentos, Andrade alerta que pouco mudou desde a tragédia em Brumadinho e teme que novas tragédias ocorram devido à falta de fiscalização e à impunidade.
“Nós sabemos que há muitas barragens em situação de risco e há poucos fiscais. As leis precisam ser mais rígidas e é necessário investir em prevenção. Brumadinho vai fazer três anos, Mariana fez seis anos. Então nós precisamos de ações preventivas para evitar o que aconteceu”, alerta.