Eles pedem suspensão de algumas medidas do PID
Entidades que mobilizam as vítimas do rompimento da barragem da mineradora Samarco levaram ao Supremo Tribunal Federal (STF) uma ação onde contestam diversos tópicos do novo acordo de reparação dos danos da tragédia. Entre outras coisas, eles pedem a suspensão de algumas cláusulas do Programa de Indenização Definitiva (PID), por considerá-las abusivas e discriminatórias. Há também questionamentos envolvendo a ausência dos atingidos nas tratativas que levaram ao novo acordo.
“Embora tenham insistentemente reivindicado assento na mesa de negociação da repactuação, o direito de participação não lhes foi concedido. O documento que tem mais de 1.300 páginas chegou ao conhecimento dos atingidos apenas no dia da assinatura”, sustentam o Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB) e a Associação Nacional dos Atingidos por Barragens (Anab), signatários da ação. As entidades anunciaram a movimentação jurídica nesta terça-feira (5), exatamente quando a tragédia completa nove anos.
Conforme a ação, teria ocorrido uma violação da Lei Federal 14.755/2023, que instituiu a Política Nacional de Atingidos por Barragens (PNAB), aprovada no ano passado. Seu artigo 3º garante às vítimas dos empreendimentos minerários o direito à “opção livre e informada a respeito das alternativas de reparação”. Dispositivo similar existe também na Política Estadual de Atingidos por Barragens do Estado de Minas Gerais (PEAB).
A barragem, que integrava um complexo minerário da Samarco na zona rural de Mariana (MG), se rompeu em 5 de novembro de 2015. Na ocasião, cerca de 39 milhões de metros cúbicos de rejeitos escoaram pela Bacia do Rio Doce. Dezenove pessoas morreram e houve impactos às populações de dezenas de municípios até a foz no Espírito Santo.
O novo acordo foi assinado no dia 25 de outubro pela Samarco, por suas acionistas Vale e BHP Billiton, pelo governo federal, pelos governos de Minas Gerais e do Espírito Santo e por diferentes instituições de Justiça, como o Ministério Público Federal (MPF) e a Defensoria Pública da União (DPU). Ele é fruto de três anos de negociações, em busca de uma repactuação do processo reparatório que fosse capaz de solucionar um passivo de 80 mil ações judiciais.
O acordo anterior, firmado em 2016 e denominado Termo de Transação e Ajustamento de Conduta (TTAC), vinha sendo considerado insatisfatório. A Fundação Renova, criada para administrar todas as medidas reparatórias, se tornou ao longo do tempo alvo de milhares de processos judiciais questionando sua atuação em temas variados como indenizações individuais, reconstrução de comunidades destruídas, recuperação ambiental, etc. Sua autonomia diante das mineradoras também era questionada.
O novo acordo extinguiu a Fundação Renova, criou um novo modelo de governança do processo reparatório e determinou que a Samarco desembolse R$ 100 bilhões em dinheiro novo, a ser desembolsado de forma parcelada ao longo de 20 anos. Esse recurso deverá bancar um conjunto de iniciativas que serão geridas de forma descentralizada, com responsabilidades distribuídas entre a União, os estados envolvidos e as instituições de Justiça. Além disso, a mineradora assumiu uma série de medidas estimadas em R$ 32 bilhões.
Caberá ao STF homologar o novo acordo. Ainda não há uma data prevista para a corte analisar o tema. A ação do MAB e da Anab pede que os atingidos sejam ouvidos antes da homologação e que seja instituído um comitê para acompanhar a implementação do acordo. As entidades cobram a aplicação do artigo 5º do PNAB, que determina a criação de um Programa de Direitos das Populações Atingidas por Barragens. Ele deve ser custeado pelas mineradoras responsáveis pela estrutura e deve ser aprovado e fiscalizado por um comitê temporário tripartite, com representantes do poder público, dos empreendedores e da sociedade civil.
Outro ponto questionado é a forma de reconhecimento dos indígenas e das populações tradicionais. Segundo as entidades, nem todas as comunidades atingidas foram incluídas, o que violaria a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT). Por ser um tratado internacional chancelados pelo Congresso Nacional, ela possui no Brasil força de lei federal. A convenção estabelece o direito de autorreconhecimento dos povos tradicionais, bem como o direito à consulta prévia, livre e informada todas as vezes que qualquer medida legislativa ou administrativa for suscetível de afetá-los diretamente.
As entidades querem também o reconhecimento de que a lama que chegou à foz do Rio Doce e ao oceano gerou danos também a quatro cidades litorâneas do sul da Bahia: Nova Viçosa, Caravelas, Alcobaça e Prado. Dessa forma, defendem na ação que o acordo inclua medidas em atendimento a atingidos e comunidades pesqueiras desses municípios.
Programa indenizatório
A principal novidade do acordo envolvendo as indenizações individuais é a instituição do PID, voltado principalmente para as vítimas ainda não reconhecidas. Apresentando a documentação básica, elas passariam a ter direito ao pagamento de R$ 35 mil referente a reparação pelos danos morais e materiais. No caso de pescadores e agricultores, o valor sobe para R$ 95 mil. A estimativa é que, ao todo, mais de 300 mil pessoas terão direito a receber valores através do PID, o que superaria os R$ 10 bilhões.
O PID está entre os pontos mais críticos na avaliação do MAB. Quando o acordo se tornou público, a entidade chegou a divulgar uma nota considerando que havia avanços como a instituição de fundos sob gestão do Estado, mas que os valores indenizatórios estavam aquém do necessário. Na ação apresentada ao STF, são apresentadas outras críticas. O MAB e a Anab sustentam que houve um tratamento desigual a pessoas que desempenham as mesmas atividades. Contesta-se, por exemplo, a exigência do Registro Geral de Pesca (RPG) e do Cadastro Nacional da Agricultura Familiar (CAF), sob o argumento de que essa medida acabaria por excluir do programa os pescadores artesanais e agricultores familiares informais.
As entidades cobram também a criação de mecanismos de fiscalização e de controle das decisões sobre os pedidos de indenização individuais que forem negados. Outra discussão que consideram fundamental envolve a assinatura de um termo de quitação final. Ele pleiteiam que a cláusula que fixa essa exigência não seja homologada. “É absolutamente inaceitável que um programa de indenização desenhado sem participação dos atingidos tenha quitação ampla e irrestrita. Artigos da PNAB e PEAB foram ignorados, além de obrigar o atingido a abrir mão de buscar justiça por outros meios”, avalia o integrante da coordenação do MAB, Thiago Alves, em nota divulgada pela entidade.
A exigência da assinatura de um termo de quitação final para ter acesso à indenização do PID pode afetar as discussões na Justiça inglesa, onde mais de 600 mil atingidos e dezenas de municípios buscam reparação em uma ação contra a BHP Billiton. A mineradora anglo-australiana acionista da Samarco é o alvo do processo porque tem sede em Londres. O escritório Pogust Goodhead, que representa as vítimas, estima que uma condenação possa chegar à R$ 260 bilhões, resultando em indenizações mais elevadas do que as previstas no acordo firmado no Brasil. Mas com a exigência do termo de quitação final, cada atingido poderá ter que fazer uma opção entre receber agora ou aguardar o resultado do processo inglês.
Jorge Messias, advogado-geral da União e representante do governo federal nas negociações do acordo, avalia se tratar de uma decisão individual e não de uma questão coletiva. Ele abordou o assunto em entrevista na semana passada ao programa Bom Dia, Ministro, veiculado pelo Canal Gov.
“Quem aderir [ao PID], evidentemente, está optando pela Justiça brasileira. As pessoas não podem ser indenizadas duas vezes pelo mesmo fato. Então, se a pessoa requerer a indenização aqui, nas condições que foram negociadas, ela vai estar abrindo mão da ação de Londres. Mas não é uma questão coletiva. É uma questão individual. As pessoas que preferirem esperar Londres e o resultado de Londres e o tempo de Londres é uma questão que vai de acordo com avaliação individual”, disse.
Segundo ele, o governo brasileiro buscará atuar para que os atingidos estejam em condições de escolher o caminho que considerarem mais adequado. “Nós estamos, neste momento, construindo um acordo de cooperação com a Defensoria Pública da União para que nós possamos levar as informações, para que a população, bem informada, possa tomar sua decisão de forma livre e voluntária”.